1. Revista Adusp Outubro 1997
ESCOLHA DE DIRIGENTES
DEMOCRACIA É BASE PARA AUTONOMIA
Maria Cristina de Morais
2. Outubro 1997 Revista Adusp
o final da década padrões nacionais mínimos de sa- O projeto do governo FHC pa-
D
de 70 até a entra- lário, condições de trabalho e aces- ra o Brasil caracteriza-se por ser
da em vigor da so à capacitação acadêmica; gratui- antipopular, anti-sindical e de en-
Lei nº 9.192/95, o dade na universidade e recursos do trega nacional, submetendo-se às
processo de esco- Estado para seu funcionamento pressões e imposições internacio-
lha dos dirigentes pleno, com orçamentos elaborados nais para viabilizar a inserção do
das Instituições de Ensino Supe- de forma democrática e pública; Brasil no processo de globalização
rior (IES) passou por intensa existência de mecanismos de ava- da economia. É um projeto que
transformação. Instrumento im- liação do desempenho universitá- tem como um de seus fundamen-
portante na luta pela democratiza- rio plenamente democratizados, tos principais a desintegração da
ção, o processo de escolha dos diri- como condição que impeça que a idéia de direitos sociais, não consi-
gentes, cujas mudanças, mesmo universidade seja subordinada à ló- derando, portanto, a necessidade
que tenham ocorrido com maior gica do mercado ou ao clientelis- das instituições públicas para via-
intensidade nas Instituições Fede- mo político; e existência de instru- bilizá-los; um projeto em que a ló-
rais de Ensino Superior (IFES), mentos de controle nacional des- gica defendida é a da destruição
não deixou de fora as Instituições vinculado do Poder Executivo, pa- dos direitos mínimos já conquista-
Estaduais de Ensino Superior ra enfrentar os interesses organiza- dos. Assim, a educação e demais
(IEES) e Instituições Particulares dos, clientelistas e privatistas. políticas sociais são admitidas co-
de Ensino Superior (IPES). Neces- Isto significa que a forma de es- mo instrumentos da política eco-
sário destacar que a luta que o colha do dirigente maior das IES, nômica, incorporando valores e
Movimento Docente travava pela mesmo não sendo a única condi- critérios de mercado, em que o
democratização da universidade ção para garantir a democracia, controle e a centralização do pro-
coincidia com o que se desenvolvia tem papel fundamental no proces- cesso de produção do conheci-
na sociedade pela redemocratiza- so. Não é por acaso que a Proposta mento são estratégias para a ma-
ção do Brasil. do Andes-SN para a universidade nutenção da nova ordem que se
brasileira contempla eleições dire- pretende estabelecer.
Projeto de universidade tas e secretas para reitor e vice-rei- Neste contexto de transforma-
tor, com a participação de docen- ções sociais e culturais, a ciência e
Impossível separar o processo tes, servidores técnico-administra- a tecnologia desempenham papel
de escolha dos dirigentes das IES tivos e estudantes, conforme defi- fundamental para a reprodução
do projeto de universidade. nido em seus estatutos e regimen- do processo de reestruturação
O Andes-SN construiu sua pro- tos, encerrando-se o processo de produtiva em nível mundial. Em
posta de universidade tendo como escolha dos dirigentes no âmbito conseqüência, sob a ótica do pro-
um de seus eixos fundamentais a da universidade. Esta é uma exi- jeto governamental, é imprescin-
autonomia indissociável da demo- gência coerente com o exercício da dível redefinir a educação, a ciên-
cracia. Isto significa que “a auto- autonomia da universidade. cia e a tecnologia. Não há como
nomia de qualquer ordem deve O governo caminha noutra di- deixar de lembrar, aqui, a Lei de
estar vinculada à democracia in- reção. Para entendermos a sua Patentes aprovada no Senado em
terna, garantida estruturalmente proposta, já em implementação maio último, já em vigor sob o nú-
nos mecanismos de decisão, con- através da Lei nº 9.192/95 para a mero 9.279/96.
trole e gestão” (Caderno Andes, escolha dos dirigentes universitá- Com esse referencial, a propos-
nº 2, edição especial, atualizada e rios, é imprescindível contextuali- ta governamental de reestrutura-
revisada, p. 47). zá-la na proposta governamental ção da universidade pública insere
São, ainda, princípios gerais da para a universidade enquanto par- uma nova configuração jurídico-
democracia das IES a garantia de te do seu projeto para o Brasil. institucional, cuja centralidade é a
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Se era intolerável para os governos da ditadura militar o processo de democratização
interna que ocorreu, principalmente nas IFES, para o governo FHC não é diferente. A
ditadura militar queria ter o controle das universidades e para isso a escolha dos
dirigentes era para ela questão central. O governo FHC age com o mesmo objetivo.
quebra da autonomia universitá- tuição ‘universidade’. É a autono- determinando, entretanto, o peso
ria, abrangendo a democracia e o mia sob forma de Orçamento Glo- de 70% para o voto dos docentes e
financiamento. Destaque-se, ain- bal com controle finalístico através o de 30%, a ser distribuído, para os
da, que a proposta de reestrutura- de Avaliação Quantitativa. votos dos servidores técnico-admi-
ção da universidade está sob o Em síntese, o objetivo da pro- nistrativos e estudantes. A possibili-
“guarda-chuva” da Reforma do posta governamental é adequar o dade de utilização do instrumento
Estado. O conteúdo da Proposta papel da universidade à nova or- de consulta pela comunidade uni-
de Emenda Constitucional nº 173- dem internacional, bem como in- versitária, um dos fatores que propi-
A/95 (da Reforma Administrativa) tensificar o processo de privatiza- ciaram o avanço da democracia in-
bem demonstra isso. ção já em curso. terna nas IES, não altera a essência
Se a centralidade da proposta da Lei nº 9.192/95 e sua intrínseca
passa por retirar da Constituição A Lei nº 9.192/95 identidade com a lei anterior, pois
Federal a garantia da Autonomia mantém no colegiado máximo a
Universitária no seu Art. 207 Não poderia ser outro o conteú- atribuição de definir as listas, não
(através da Proposta de Emenda do da Lei nº 9.192/95, de 21 de de- mais sêxtuplas e sim tríplices, a se-
Constitucional nº 370-A/96), qual zembro de 1995, que regulamenta o rem encaminhadas ao Presidente da
a intenção do governo? A propos- processo de escolha dos dirigentes República, que definirá o reitor e vi-
ta de autonomia do governo não é universitários. Se era intolerável pa- ce-reitor, independentemente da or-
nova. A argumentação utilizada é ra os governos da ditadura militar o dem estabelecida pelo Colegiado.
a necessidade do exercício pleno processo de democratização interna Para entendermos a importância
da autonomia universitária e a fle- que ocorreu, principalmente nas do processo de escolha dos dirigen-
xibilização da gestão. É a necessi- IFES, para o governo FHC não é tes num dado Projeto de Universi-
dade de “reformas” para tirar as diferente. A ditadura militar queria dade e a relação desta com o gover-
“amarras” da universidade. Seu ter o controle das universidades e no é necessário contextualizar no
conceito fundamenta-se: na lógica para isso a escolha dos dirigentes era tempo a Lei nº 9.192/95. É signifi-
de mercado; na qualidade e efi- para ela questão central. O governo cativo que a primeira iniciativa do
ciência do sistema (produtividade, FHC age com o mesmo objetivo. governo FHC em relação às IES
qualidade total); na avaliação O governo utiliza-se da Lei tenha sido a tentativa de implantar
quantitativa enquanto condição nº 5.540/68, que impôs a Reforma a sua proposta para escolha de diri-
para concessão de Dotação Orça- Universitária, para, a partir de alte- gentes universitários das Institui-
mentária Global ou Orçamento rações no seu art. 16, tentar passar a ções Federais de Ensino Superior,
Global, com controle finalístico; idéia de que a “nova” lei (a de através da MP nº 938, de 16 de
no empresariamento do ensino su- nº 9.192/95) democratiza o processo março de 1995, bem no início do
perior público através da captação de escolha de dirigentes universitá- seu governo. Essa Medida Provisó-
de recursos no setor privado; e na rios. Para tanto, introduz o mecanis- ria contemplava, ainda, a composi-
autonomia para os dirigentes uni- mo de consulta prévia à comunida- ção e atribuições do Conselho Na-
versitários (mas com subordinação de universitária a critério do cole- cional de Educação (CNE) e cria-
ao Executivo) e não para a insti- giado máximo de cada instituição, ção do Exame Nacional de Cursos
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O projeto do governo FHC não é específico à esfera federal do Estado Brasileiro.
O ataque aos direitos sociais atinge a população em geral. A reforma
do aparelho de Estado abrange, também, as esferas estaduais e municipais,
tanto na sua concepção como no processo de implementação. Assim, governos
estaduais e municipais reproduzem a política nacional em níveis diferenciados,
mas articulados, sem desprezar o projeto para o setor educacional.
— o provão. Dificuldades na trami- tuição. Nos demais casos, o diri- ca de direito privado, com a intro-
tação dessa MP, que provocou mui- gente será escolhido conforme es- dução do contrato de gestão. Nes-
ta polêmica no meio universitário, tabelecido pelo respectivo sistema ta, o processo de escolha do reitor
levaram o governo FHC a retirar o de ensino (estadual e municipal). e vice-reitor está sob o controle do
dispositivo sobre eleição dos diri- No entanto, o projeto do gover- chefe do Poder Executivo, sem
gentes universitários, reapresentan- no FHC não é específico à esfera qualquer indicação de participação
do tal proposta sob forma de proje- federal do Estado Brasileiro. O da comunidade universitária.
to de lei. Esse projeto (nº 462/95), ataque aos direitos sociais atinge a
aprovado em dezembro de 1995 pe- população em geral. A reforma do A necessidade de resposta
lo Congresso Nacional sem qual- aparelho de Estado abrange, tam-
quer discussão, foi utilizado, inclusi- bém, as esferas estaduais e munici- À comunidade universitária ca-
ve, o mecanismo regimental de “ur- pais, tanto na sua concepção como be a definição da opção ou não pe-
gência urgentíssima”. no processo de implementação. la Lei nº 9.192/95. Aceitar esta lei
Para o governo, é fundamental Assim, governos estaduais e muni- significa assumir um projeto de
ter controle sobre os dirigentes cipais reproduzem a política nacio- universidade que se contrapõe à
universitários para viabilizar o seu nal em níveis diferenciados, mas Proposta do Andes-SN para a Uni-
projeto de universidade. Destaque- articulados, sem desprezar o proje- versidade Brasileira (Cadernos
se, ainda, que o governo sequer to para o setor educacional. Isto ANDES nº 2) e significa deixar pa-
aguardou a aprovação da sua pro- significa dizer que a proposta de ra trás a rica e histórica luta que o
posta para Lei de Diretrizes e Ba- reestruturação da universidade Movimento Docente organizado
ses da Educação Nacional (Lei acabará por abranger todo o siste- no Andes-SN, juntamente com a
nº 9.394, que foi aprovada pelo ma público, inclusive no que diz Fasubra-Sindical e a UNE, travou
Congresso Nacional em 17 de de- respeito à questão de escolha dos pela democratização interna das
zembro de 1996), um ano após es- dirigentes universitários. IES e que, com certeza, constitui
tar em vigor a Lei nº 9.192, que re- Em relação à implementação do em importante instrumento em de-
gulamenta o art. 56 da LDB. projeto do governo FHC nas IEES, fesa da universidade pública e gra-
dois exemplos se destacam. Um, tuita, resistindo a inúmeras investi-
Integração estadual e municipal ainda, enquanto tentativa: o Proje- das governamentais.
to de Agências Sociais Autônomas
A Lei nº 9.192/95 refere-se ape- para as IEES do Estado do Paraná; Então, o que fazer?
nas ao Sistema Federal de Ensino o outro, já aprovado e em processo
Superior, enquanto que, para o se- de implementação: a privatização A resposta está na implementa-
tor privado, a escolha dos dirigen- da Universidade Estadual do Esta- ção de ações que só dependem da
tes dar-se-á segundo determina o do do Tocantins, transformada em vontade política e do compromisso
estatuto e regimento de cada Insti- fundação com personalidade jurídi- em defesa da universidade pública
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Os exemplos de consultas diretas, com as formas de participação
(universalidade, paridade e proporcionalidade) definidas internamente
pelos três segmentos universitários e o respeito do Colégio Eleitoral pelo
resultado do pleito (...) demonstram que quando a comunidade universitária
se mobiliza (...) ela pode obter êxito e superar retrocessos, alianças espúrias
que visam a mobilizar a universidade impedindo o seu avanço.
e gratuita que, apesar dos ataques Na Universidade Federal do Ma- novo reitor foi empossado em ju-
que sofre do governo, trazendo-lhe to Grosso, as entidades representa- lho. Com o reinício das aulas, reco-
deficiências, deve ser nosso ponto tivas de docentes, servidores técni- meçam, também, as articulações
de referência e o fundamento de co-administrativos e estudantes or- entre as entidades da comunidade
nossa resistência às investidas go- ganizaram o pleito (direto e paritá- universitária para definir uma es-
vernamentais. Devemos trabalhar rio). Apurada a votação, o eleito tratégia de resistência ao obscu-
portanto, na perspectiva de dar apresentou ao Colégio Eleitoral rantismo e retrocesso impostos pe-
concretude à Proposta do Andes- mais dois nomes para compor a lista la lei de escolha de dirigentes.
SN para a Universidade Brasileira tríplice, apenas para cumprir a for- Assim, os exemplos de consul-
(Caderno Andes nº 2). malidade da lei. O Colégio Eleito- tas diretas, com as formas de par-
Assim, temos de dar continui- ral, então, realizou votação secreta. ticipação (universalidade, parida-
dade ao que vinha sendo feito. O resultado: o mesmo obtido nas de e proporcionalidade) definidas
Não podemos renunciar à autono- urnas da comunidade universitária. internamente pelos três segmentos
mia universitária, permitindo a in- Já na Universidade Federal do universitários e o respeito do Co-
gerência político-partidária e do Pará, contudo, o Colégio Eleitoral légio Eleitoral pelo resultado do
Executivo nos processos de escolha ignorou a vontade expressa na pleito — com forte rejeição a fór-
dos dirigentes universitários. eleição direta, rompendo, inclusi- mula da lei — demonstram que
No entanto, cabe ao Movimen- ve, o acordo que vigorava há cerca quando a comunidade universitá-
to Docente fazer autocrítica sobre de oito anos, por meio do qual é ria se mobiliza tendo em vista a
a forma como vem atuando em re- ratificado, pelo Colégio, o resulta- manutenção de processos demo-
lação à questão. Os processos elei- do da votação. cráticos ela pode obter êxito e su-
torais que ocorrem em várias Temendo uma manobra autori- perar retrocessos, alianças espú-
IFES, sob a vigência da Lei tária, a comunidade universitária rias que visam a mobilizar a uni-
nº 9.192/95, demonstram que, res- da UFPA mobilizou-se na tentativa versidade impedindo o seu avanço.
salvadas as exceções, no geral hou- de pressionar os conselheiros para Democracia, ensino público e
ve aceitação da lei. referendar o pleito, ocorrido em gratuito e autonomia da universi-
As últimas eleições para reitor e abril deste ano. O reitor optou, no dade são os fatores básicos neces-
vice na UFSCar e na UFMat são entanto, pela via do autoritarismo sários, por que lutar, na consecu-
exemplos dessas honrosas exceções. para garantir a eleição de seu can- ção de uma universidade que este-
Cumprindo a formalidade da lei, es- didato, que havia obtido o terceiro ja a serviço de toda a sociedade.
sas instituições não deixaram de res- lugar no pleito direto. Convocou
Maria Cristina de Morais é presi-
peitar sua própria tradição democrá- tropas das polícias federal e militar
dente do Andes-SN e professora do
tica, ao acatar, através do Colégio para “instaurar a ordem” no cam- Departamento de Arquitetura e Ur-
Eleitoral, a vontade expressa nas ur- pus e conseguiu que o Colégio banismo da Universidade Federal do
nas pela comunidade universitária. Eleitoral fizesse a sua vontade. O Rio Grande do Norte (UFRN).
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